Preciso escrever sobre isso. Está engasgado desde que realizei: a minha escola de Brasil é Maria Bethânia.
Não sou expert na cantora, pelo contrário, mas Bethânia esteve presente na minha vida desde sempre. Fera Ferida e As Canções Que Você Fez Pra Mim me lembram a casa da minha avó. Eu, criancinha, brincando no chão da sala e ela fazendo a comida na cozinha. O aparelho de som ligado e o cheiro do feijão.
Aos 15 anos, conheci a Corinha, que se tornou “minha tia”, e ela conhecia Bethânia. Aos 15, pisei no Canecão pela primeira vez para assistir Tempo Tempo Tempo Tempo (2005), show em que Bethânia comemorava 40 anos de carreira. E aí eu conheci a Bethânia de verdade. Literalmente.
Tempo Tempo Tempo Tempo me deixou encantado. Tudo era fantástico nesse show. Do cenário ao colar de Bethânia. Com o olhar fotográfico começando a ser aguçado, eu pirei. O jogo de sombras e luzes me despertou para a fotografia. A iluminação era do Maneco Quinderé e a direção geral da Bia Lessa. Ali aprendi esses nomes e nunca mais os esqueci.
Assisti ao show Tempo Tempo Tempo Tempo no Canecão seis vezes. A Laura vai lembrar disso. O cabeludo que ia lá na porta sozinho pedir ingresso — treinando a minha cara de pau desde cedo.
Às vezes dava para entrar no camarim depois do show. Nunca vou esquecer daqueles momentos. Ali eu via quem era Bethânia fora do palco, uma entidade.
No último dia da turnê no Canecão, ia rolar uma pizza depois da apresentação. Corinha foi ao show e ia me levar ao jantar. Bethânia estava cansada e disse que não iria. Fomos nós.
Sentei ao lado da Miúcha e de frente para a Olivia Byington. Já estava nervoso o suficiente e eis que chega Bethânia com a namorada. A deusa tinha resolvido ir ao jantar.
Nessa época, eu tinha 16 anos, gordinho, cabeludo, cheio de espinha na cara. Tava travado naquela mesa. Lembro de dividir com a Miúcha queixas sobre dor na lombar, mas eu basicamente só conseguia ouvir. Imagina, falar o que naquela mesa? Nunca esqueci das histórias que Bethânia contou sobre seu pai e sobre a Bahia.
Nesses contatos, aprendi sobre respeito. O respeito ao ofício e a equipe de trabalho. E também ao público. Via como ela tinha seriedade com o que fazia e como o palco era muito mais do que uma apresentação para as pessoas. Era uma catarse, o momento dela com ela mesma. Lindo de ver essas duas Bethânias.
E aí eu mergulhei no que havia de recente de Maria Bethânia. Comecei por Maricotinha (2001), Noite Luzidia (2001), o incrível Brasileirinho (2003) e depois o CD com músicas de Vinícius (2005) — que me fez entrar em outra viagem com Vinícius de Moraes e Tom Jobim.
Nessa época, 2006 ela lançou Pirata. Esse CD foi definitivo para me identificar com o interior do Brasil. Sentia uma conexão muito forte com aquelas músicas. A roça, os orixás, a natureza. Nasci na cidade grande mas meu coração sempre foi do interior.
Em seguida Bethânia lançou Mar de Sophia (2006, que ano!), Dentro do Mar Tem Rio (2007), que é um dos meus preferidos, e um CD lindo com Omara Portuondo (2007) — que também me levou para uma viagem com Omara e o Buena Vista Social Club.
Em 2010, ela fez a turnê Amor, Festa, Devoção e foram os últimos shows que fui. Nesse ano, me mudei para São Paulo para trabalhar fixo em redação e a vida seguiu. Os ótimos trabalhos que ela lançou depois disso confesso que me envolvi pouco. Não sei porque, talvez para guardar aquela Bethânia de 2006 na memória.
Não sou entendido de música, mas diria que de 2001 a 2010, quase todos os trabalhos da Bethânia foram sobre o Brasil (acho que ela sempre foi assim, eu que percebi atrasado). São trabalhos que destacam a grandeza da roça e a riqueza do interior. Valorizam a simplicidade, o sertanejo, o indígena, o ribeirinho, o quilombola e as suas respectivas espiritualidades.
Antes de rodar o Brasil através da fotografia e conhecer de perto muito do que Bethânia canta, eu sentia que já conhecia o país a partir das composições populares que a filha de dona Canô escolhia para emprestar sua voz. Ô ser abençoado a senhora, viu, dona Canô.
O Brasil que eu amo é o Brasil da dona Canô e das músicas que Bethânia canta. É o Brasil que Bethânia me ensinou a amar e a conhecer, não o Brasil que aprendi na escola. A minha escola de Brasil é Maria Bethânia.